domingo, 21 de outubro de 2007

WALTER BENJAMIN - Franz Kafka

No décimo aniversário de sua morte

Potemkin

Conta-se que Potemkin sofria de depressões cada vez mais graves, em intervalos mais ou menos regulares, durante as quais ninguém podia aproximar-se dele, e a entrada em seus aposentos era severamente proibida. Na corte não se falava nunca desta en­fermidade, principalmente porque se sabia que qualquer comen­tário sobre ela desagradava à imperatriz Catarina. Uma dessas depressões do chanceler teve uma duração, particularmente longa, o que provocou sérios inconvenientes: nos despachos, acumulavam-se documentos que não podiam ser expedidos sem a assinatura de Potemkin e sobre os quais a czarina reclamava decisões. Os altos funcionários não sabiam o que fazer. Nestas circunstâncias, o pe­queno e insignificante escrevente Chuvalkin chegou casualmente às antecâmaras ministeriais onde os conselheiros encontravam-se reunidos, como de costume, para chorar e lamentar-se. "Que se passa, Excelências? Em que posso servir a Vossas Excelências?", perguntou o solícito Chuvalkin. Explicaram-lhe a situação, lamen-tando-se de não se poderem valer de seus serviços. "Se é só isso, meus senhores — respondeu Chuvalkin —, peço-lhes que me dêem os documentos". Os conselheiros, que nada tinham a perder, con­cordaram, e Chuvalkin, com o maço de documentos debaixo do braço, dirigiu-se, através das galerias e corredores, até o quarto de Potemkin. Sem bater à porta nem deter-se, pôs a mão no trin­co. A porta não estava trancada. Na penumbra, Potemkin estava sentado na cama, envolto num velho roupão, roendo as unhas. Chuvalkin aproximou-se da escrivaninha, molhou a pena no tin-teiro e, sem dizer palavra, colocou a caneta na mão de Potemkin, tomando um documento ao acaso e pondo-o sobre os seus joelhos. Após lançar um olhar ausente ao intruso, Potemkin o assinou como um sonâmbulo; em seguida assinou outro, e logo todos. Quando tinha nas mãos o último documento, Chuvalkin re-tirou-se sem cerimônias, assim como havia chegado, com seu dossier debaixo do braço. Brandindo os documentos, em um gesto de triunfo, Chuvalkin entrou na antecâmara. Os conselheiros pre­cipitaram-se ao seu encontro, arrancando-lhe os papéis das mãos. Contendo a respiração, inclinaram-se sobre os documentos; nin­guém disse uma palavra sequer; ficaram como que petrificados. Outra vez Chuvalkin aproximou-se deles, outra vez informou-se com solicitude da causa de sua consternação. Então, seus olhos viram também a assinatura. Um documento após outro estava assinado: Chuvalkin, Chuvalkin, Chuvalkin...

Essa história é como um arauto que anuncia com dois sé­culos de antecedência a obra de Kafka. O enigma que ela encer­ra é o mesmo de Kafka. O mundo das chancelarias e das reparti­ções, dos quartos escuros, bolorentos e úmidos, é o mundo de Kafka. O solícito Chuvalkin, que faz tudo tão rapidamente e fica com as mãos vazias, é o K. de Kafka. Mas Potemkin, que, descuidado e sonolento, perde-se numa existência crepuscular em um lugar afas­tado onde é proibida a entrada, é um antepassado desses pode­rosos que, em Kafka, residem como juizes em sótãos, como se­cretários no castelo, e, por mais alto em que se encontrem, são sempre seres decaídos, ou, melhor, em decadência, mas que, em compensação, podem aparecer repentinamente em toda a plenitude de seus poderes, mesmo através de seus representantes mais infe­riores e degenerados (os porteiros, os funcionários decrépitos). Sobre o que divagam no seu crepúsculo? Acaso são epígonos dos Atlantes, que sustentam o mundo sobre a nuca? É, acaso, por isso que man­têm a cabeça "tão profundamente inclinada para o peito que qua­se não se lhes vê os olhos", como o castelão em seu retrato ou Klamm quando se encontra a sós consigo mesmo? Não, não é o mundo que sustentam; trata-se de que o dia-a-dia tem o peso do globo terrestre: "Seu cansaço é o do gladiador depois da luta; seu trabalho consistia em caiar um canto da sala dos funcioná­rios!" Georg Lukács disse uma vez que, para fabricar hoje uma mesa decente, é preciso possuir o gênio arquitetônico de Miguel Ângelo. Assim como Lukács pensa em termos de épocas, Kafka pensa em termos de eras. O homem deve deslocar eras inteiras no ato de caiar. E isto ao executar mesmo o menor gesto. Muitas vezes — e muitas vezes por razões singulares — os personagens de Kafka batem as mãos. Em determinado instante entretanto, diz-se, de passagem, que aquelas mãos nada são "além de mar­telos a vapor".

Esses poderosos aparecem-nos ou em movimento vagaroso e constante de ascensão ou de queda. Porém, não são, agora, mais terríveis do que quando se elevam da mais profunda abjeção: a dos pais. O filho procura acalmar o pai estúpido e pueril, a quem acaba de pôr na cama:

"Fica tranqüilo, estás bem coberto". "Não", gritou o pai, e, sem dar tempo para uma resposta, puxou a man­ta com tal força que por um momento ela permaneceu aberta em toda a sua extensão, e pulou sobre a cama. Com uma só mão, apoiava-se levemente no teto. "Que-rias cobrir-me, eu sei, meu amorzinho, mas, não estou ainda coberto. Nem que fossem minhas últimas ener­gias! É bastante para ti, é demais para ti. (...) Feliz­mente um pai não tem necessidade de que lhe ensi­nem a ler a alma do filho" (...) E permaneceu ali jo­gando as pernas para um lado e para outro. Resplande­cia de perspicácia. (...) "Agora sabes o que há no mundo fora de ti; até agora sabias apenas o que havia em ti. Eras realmente um menininho inocente, con­tudo, mais verdadeiramente ainda eras uma criatura diabólica!"

O pai, libertando-se do peso da manta, liberta-se de um peso cós­mico. Ele deve pôr em movimento eras cósmicas, para reanimar e tornar outra vez fecunda a antiquíssima relação pai-filho. Mas, fecunda de que conseqüências! Condena o filho à morte por afo-gamento. O pai é aquele que castiga. A culpa o atrai como aos funcionários do tribunal. Muitos indícios levam a pensar que, para Kafka, o mundo dos funcionários é o mesmo mundo dos pais. A semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e sujeira. O uniforme do pai está manchado da cabeça aos pés; sua roupa de baixo está suja. A imundície é o elemento vital dos funcionários. "Não conseguia sequer compreender porque as par­tes iam e vinham. 'Para sujar a escada', disse-lhe uma vez um funcionário, provavelmente com raiva, mas esta resposta parecia-lhe o óbvio". A sujeira é a tal ponto atributo dos funcionários que eles quase poderiam ser considerados como parasitas gigan­tes. Isto não se refere, naturalmente, às relações econômicas, mas às forças da razão e da humanidade de que se nutre esta raça. Desse modo, inclusive o pai vive do filho e pesa sobre ele como um enorme parasita nas famílias de Kafka. Não consome apenas as forças do filho, mas o seu direito de existir. O pai é ao mesmo tempo o juiz e o acusador. O pecado de que acusa o filho parece uma espécie de pecado original. Pois ninguém se vê mais atingido que o filho pela definição que Kafka deu do pecado ori­ginal:

A culpa originária, o antigo erro cometido pelo homem, consiste na reprovação que ele faz — e de que não de­siste — de que lhe foi feito um mal, que a culpa ori­ginária foi cometida contra ele.

Entretanto, quem é acusado desta culpa hereditária — a culpa de ter feito um herdeiro — senão o pai, pelo filho? De tal modo que o culpado seria o filho. Mas não é lícito deduzir das afir­mações de Kafka que a acusação seria culpada pelo fato de ser falsa. Kafka jamais diz que ela é infundada. O que se debate aqui é um processo sem fim. E sobre uma causa não poderia incidir luz pior do que a que incide sobre aquela para a qual o pai re­clama a solidariedade destes funcionários, destas chancelarias ju­diciais. O pior nisto não é uma venalidade sem limites. Pois que sua natureza é tal que sua venalidade é, inclusive, a única espe­rança que a humanidade talvez possa nutrir a respeito deles. Cer­tamente os tribunais têm códigos, mas códigos que não se podem ver. "Faz parte deste sistema ser condenado não somente sem culpa, como também ignorando a condenação", pensa K. Leis e normas prescritas permanecem, na pré-história, como leis não es­critas. O homem pode violá-las sem saber que o faz e incorrer, assim, no castigo. Mas, conquanto se possa ferir cruelmente a quem não o espera, o castigo, no sentido do direito, não é um acaso, e sim destino, que se revela aqui em sua ambigüidade. Já Hermann Cohen, em uma rápida análise da concepção antiga do destino definiu-o como um "conhecimento ao qual é impossível subtrair-se" e "cujos próprios mandamentos parecem originar e produzir essa infração, esse desvio". O mesmo vale para a jus­tiça que age contra K. Esta ação judicial nos devolve, muito além dos tempos da legislação das doze tábuas, a uma pré-história sobre a qual uma das primeiras vitórias foi o direito escrito. Aqui o direito escrito encontra-se, por certo, nos códigos; mas secreta­mente, e na base deles, a pré-história exerce um domínio muito mais ilimitado.

Em Kafka, as condições reinantes nas repartições e na fa­mília apresentam muitos pontos de contacto. No povoado que se encontra nas proximidades do castelo, usa-se uma expressão es­clarecedora neste sentido:

"Aqui há uma forma de dizer que talvez já conheças: as decisões da administração são tímidas como moci­nhas". "Uma observação aguda", disse K., . . . "real­mente aguda, as decisões da administração devem ter outras características em comum com as mocinhas".

A mais notável é a de prestar-se para tudo, como as tímidas moças que tropeçam com K. em O Castelo e O Processo, e que se abandonam à lascívia no seio da família tanto quanto em uma cama. K. as encontra em seu caminho a todo momento, e o resto apresenta tão poucas dificuldades como a conquista da moça da cantina.

Abraçaram-se, o corpo delgado ardia nas mãos de K.; num delírio ao qual K. procurava incessantemente, mas em vão, subtrair-se, caíram na terra a uns poucos pas­sos dali, bateram com um golpe surdo a porta de Klamm e permaneceram ali estendidos entre pequenas poças de cerveja e outros restos dos quais o chão se achava coberto. Passaram horas assim . .. durante as quais K. teve a impressão constante de perder-se, ou de ter penetrado tanto em um país estranho como ne­nhum ser humano antes dele tivesse ousado, em uma terra desconhecida onde o próprio ar carecia de todos os elementos do ar natal, onde se sentia tão estranho que tinha a sensação de sufocar e onde, seguramente, em meio daquelas insensatas seduções, não podia fazer outra coisa senão internar-se ainda mais, continuar a perder-se.

Ainda ouviremos falar desta estranheza. Entretanto, vale a pena lembrar que estas mulheres lascivas nunca são bonitas. A beleza, no mundo de Kafka, aflora apenas nos lugares mais secretos: por exemplo, nos acusados.

Este é um fenômeno extraordinário, porém em certo sentido fisiológico ... Não pode ser a culpa o que os torna belos ... não pode ser sequer o castigo jus­to que os torna belos agora ... Então quer dizer que há no procedimento contra eles algo que os trans­forma.

De O Processo deduz-se que esse procedimento é geralmente sem esperanças para os acusados: não há esperanças ainda que lhes reste uma esperança de absolvição. E é talvez esta ausência de esperanças que faz surgir neles a beleza — neles somente, entre todas as criaturas de Kafka. Isto concordaria perfeitamente com o fragmento de uma conversa citada por Max Brod:

Lembro-me de uma conversa com Kafka, cujo ponto de partida era a Europa atual e a decadência da hu­manidade. "Somos — disse ele — pensamentos nii­listas, pensamentos de suicídio que afloram na mente de Deus". Isto em princípio me fez pensar na visão do mundo da gnose: Deus como demiurgo maligno e o mundo como seu pecado original. "Ó não — disse —,j nosso mundo é só um mau humor de Deus, um mau dia". "Fora desta manifestação, deste mundo que conhe­cemos, haveria então esperança?" Sorriu. "Sem dúvi­da, muita esperança, infinita esperança, porém não para nós".

Estas palavras nos indicam esses estranhos entre os estranhos personagens de Kafka, os únicos que escaparam do seio da fa­mília e para os quais talvez haja esperanças. Não são os ani­mais nem tampouco esses cruzamentos ou seres imaginários como o cordeiro-gato ou Odradek. Estes também vivem ainda à som­bra da família. Não é por acaso que Gregor Samsa acorda transformado em barata precisamente na casa de seus pais, não é por acaso que o animal meio gato meio cordeiro "provém da herança paterna"; não é por acaso que Odradek é "a preocupação do pai de família". São os "ajudantes" os que escapam efetiva­mente deste âmbito.

Estes ajudantes pertencem a um ciclo de personagens que atravessa toda a obra de Kafka. À sua espécie pertence tanto o truão que é desmascarado em A Contemplação, quanto o estu­dante que aparece à noite na sacada vizinha à de Karl Rossmann ou os loucos que habitam aquela cidade do sul e não se cansam jamais. Sua existência crepuscular faz pensar na luz incerta que banha os personagens das histórias curtas de Robert Walser, autor do romance O Ajudante, muito admirado por Kafka. As sagas índias têm os gandharva, criaturas embrionárias, seres em estado nebuloso. Do seu tipo são os ajudantes de Kafka, que não per­tencem — porém tampouco são estranhos — a nenhum dos outros grupos de personagens kafkianos: trata-se de mensageiros que co­municam os grupos entre si. Assemelham-se, como diz Kafka, a Barnabé, e Barnabé é um mensageiro. Ainda não saíram comple­tamente do seio da natureza e por conseguinte

acomodados no chão, em uma canto, sobre dois velhos vestidos de mulher .. . Toda sua ambição era ime­diata . . . consistia em ocupar o menor espaço pos­sível; com esta finalidade fizeram várias tentativas, sempre acompanhadas por risos e murmúrios abafados entrecruzando braços e pernas, colocando-se um muito junto do outro, e na penumbra não se via em seu can-tinho mais que um enorme novelo.

Para eles e seus semelhantes, os embrionários e os ineptos, existe a esperança.

O que se pode reconhecer de terno e gratuito na conduta destes mensageiros é, de um modo mais pesado e mais sombrio, a lei de todo este mundo de criaturas. Nenhuma tem um lugar fixo nem contornos claros e inconfundíveis; nenhuma se encontra em outra situação que não seja a de subir ou cair; nenhuma que não se possa trocar com seu inimigo ou seu vizinho; nenhuma que não tenha completado sua maioridade e que, apesar disso, não seja imatura; nenhuma que não esteja profundamente exausta e, entretanto, ainda no começo de uma longa duração. Não se pode sequer falar de ordens ou de hierarquias. O mundo do mito, que nos tentaria a fazê-lo, é infinitameinte mais jovem que o mundo de Kafka, ao qual o mito já prometeu a redenção. Porém, se sa­bemos de alguma coisa, é do seguinte: que Kafka não cedeu às suas tentações. Novo Ulisses, deixou que elas resvalassem,

com seus olhares fixados no horizonte; as sereias desa­parecem literalmente frente à sua resolução, e justa­mente quando mais próximas estavam, ele já não sabia nada delas.

Entre os antepassados com que Kafka conta na antigüidade, judeus e chineses, que ainda teremos ocasião de encontrar, é pre­ciso não esquecer este grego Ulisses está no limite que divide o mito da fábula. Razão e astúcia introduziram no mito suas arti­manhas; seus poderes já não são invencíveis. A fábula é a re­cordação da vitória sobre eles. E Kafka escerveu fábulas para dialéticos, quando se propôs escrever lendas. Introduziu nelas pe­quenos truques para obter assim a "prova de que até os meios insuficientes ou verdadeiramente pueris podem conduzir à salva­ção". Com estas palavras inicia a narrativa O silêncio das sereias. Nele, de fato, as sereias calam: "têm uma arma mais terrível que o canto ... seu silêncio". E a esta arma recorreram contra Ulisses. Porém Ulisses, narra Kafka,

era tão rico em astúcia, era uma raposa tão sutil, que nem sequer a idéia de destino podia penetrar em seu interior. Ainda que isto pareça superior à inteligência humana, talvez ele tenha observado claramente que as sereias calavam e só como escudo opôs a elas e aos deuses daquela comédia.

Em Kafka as sereias calam. Talvez até porque nele a mú­sica e o canto são uma expressão ou, ao menos, um testemunho de salvação. Um testemunho de esperança que nos chega desde esse pequeno mundo intermediário, ao mesmo tempo inacabado e trivial, consolador e tolo, em que vivem os ajudantes. Kafka é o jovem que partiu para conhecer o medo. Chegou ao palácio de Potemkim, mas afinal, nos buracos de suas adegas, topou com Josefina, a ratinha que canta, cuja melodia descreve assim:

Há nela alguma coisa da pobre, breve infância, algu­ma coisa da felicidade perdida e para sempre irrecupe­rável, mas também algo da vida ativa e presente, de sua pequena, inexplicável e sem dúvida constante e irre­primível alegria.

Um retrato de infância

Há um retrato de Kafka menino, e raramente "a pobre, breve infância" se traduziu em imagem mais pungente. Deve ter sido tirado num desses estúdios fotográficos do século passado que, com seus cortinados e suas palmeiras, suas tapeçarias e seus cavaletes, estavam a meio caminho entre a câmara de torturas e a sala do trono. Ali, numa roupinha apertada, quase humilhante, sobrecar­regada de rendas, um menino de seis anos aparece diante de uma paisagem de estufa. Sobre o fundo há rígidas folhas de palmeira. E como se se tratasse de tornar mais quentes e mais sufocantes esses trópicos pré-fabricados, o menino tem à esquerda um enorme sombreiro de abas largas, como os dos espanhóis. Olhos infini­tamente tristes perscrutam a paisagem que lhes foi imposta e a cavidade de uma grande orelha aparece escutando.

O ardente Desejo de vir á ser um índio nutriu-se talvez du­rante uma época desta grande tristeza:

Ó, ser um índio, sempre disposto, e sobre o cavalo a galope cortar o ar, vibrar sempre de novo levemente sobre o terreno que vibra, até que se abandonam as esporas, porque não há esporas, até que se atiram fora as rédeas, porque não há rédeas, e não se vê mais que o campo diante de si, igual a uma charneca pelada, onde já se desvaneceram o pescoço e a cabeça do cavalo.

Este desejo é muito significativo. Seu segredo é desvelado ao consumar-se em América. O romance América possui um caráter particular, que se evidencia no nome do protagonista, enquanto nos romances anteriores o autor jamais se dirigia a si mesmo se­não com o murmúrio de uma inicial, aqui vive um renascimento com seu nome inteiro e no novo mundo. Vive tal renascimento no teatro natural de Oklahoma.

Em uma esquina Karl viu um cartaz com o seguinte anúncio: No hipódromo de Clayton, hoje, a partir das seis da manhã até a meia-noite, será recrutado pes­soal para o teatro de Oklahoma! O grande Teatro de Oklahoma os chama! Chama-os somente hoje, por uma só vez! Quem perder esta ocasião vai perdê-la para sempre! Quem pensa em seu futuro é dos nossos! To­dos são bem-vindos! Que se apresente aquele que qui­ser ser artista! Somos o Teatro que pode empregar a todos, cada um em seu lugar! Sem mais, sejam bem-vindos os que se decidirem a seguir-nos! Porém apres­sem-se para que possam ser engajados antes de meia-noite! À meia-noite, tudo será fechado e não será mais reaberto! Ai daquele que não nos acredita! A caminho para Clayton!

O leitor desse anúncio é Karl Rossmann, a terceira e mais feliz encarnação daquele K. que é o herói dos romances de Kafka. A felicidade o espera no teatro natural de Oklahoma, que é um hi­pódromo verdadeiro, assim como a "infelicidade" se havia apossado dele numa ocasião sobre o estreito tapete do seu quarto, onde cor­ria em círculos "como em um hipódromo". Depois de ter escrito suas considerações "para uso dos cavalariços", depois de ter des­crito o "novo advogado" ao longo das escadas do tribunal, "levan­tando as ancas, com passos ressoantes sobre o mármore", e de ter descrito seus Moços no caminho principal trotando no campo, com grandes saltos e com os braços entrecruzados, esta imagem tor-nou-se-lhe familiar; e na prática pode acontecer mesmo a Karl Rossmann dar "várias vezes distraidamente, em seu estado de so-nolência, saltos muito altos, com uma inútil perda de tempo". Por isso não pode ser mais que um hipódromo o lugar onde al­cança a meta de seus desejos.

Este hipódromo é, ao mesmo tempo, um teatro, e isto cons­titui um enigma. Porém o lugar enigmático e a figura, de nenhum modo enigmática, e sim clara e transparente de Karl Rossmann formam um todo coerente. Transparente, claro, até mesmo sem ca­ráter é, de fato, Karl Rossmann: ele o é no sentido em que Franz Rosenzweig, em seu livro "Stern der Erlösung", diz que na China o homem interior

carece de caráter; o conceito do sábio, encarnado clas-sicamente . . . por Confúcio, apaga toda possível par­ticularidade do caráter; é o homem verdadeiramente privado de caráter, ou seja, o homem comum... O que distingue o homem chinês é algo diferente do ca­ráter: uma pureza elementar de sentimento.

Por mais que isso possa explicar-se teoricamente — talvez essa pureza de sentimento seja um equilíbrio particularmente refinado do comportamento mímico —, de qualquer modo o teatro natu­ral de Oklahoma nos encaminha para o teatro chinês, que é um teatro mímico. Uma das funções mais importantes deste teatro natural é resolver a ação no gesto. E é possível ir mais além e sustentar que toda uma série de ensaios e histórias curtas de Kafka acham-se plenamente iluminados somente se se os põe em rela­ção como documentos, por assim dizer, com "o teatro natural de Oklahoma". Só então se pode ver com certeza que toda a obra de Kafka representa um código de gestos que, a priori, não pos­suem para o autor um claro significado simbólico, mas são melhor questionados em relação a ordenamentos e combinações sempre renovados. O teatro é a sede natural dessas experiências. Em um comentário inédito ao Fratricídio, Werner Kraft decifrou lucida-mente o desenvolvimento desta história como acontecer cênico.

A representação pode começar e é efetivamente anun­ciada pelo soar de uma campanhia. Este som se produz da forma mais natural tão logo Wese deixa a casa onde está seu escritório. Porém, diz-se expressamente que essa campainha "é sonora demais para ser a campainha de uma porta, soa sobre toda a cidade, eleva-se até o céu".

Assim como essa campainha, forte demais para uma porta, eleva-se até o céu, os gestos dos personagens de Kafka são fortes demais para seu ambiente e irrompem em um espaço mais amplo. À medida que foi-se afirmando sua maestria estilística, Kafka renun­ciou progressivamente a adaptar estes gestos a situações normais, a explicá-los.

É uma mania curiosa a sua — diz-se em A Metamor­fose — de sentar-se sobre a escrivaninha e falar do alto ao empregado, que além do mais, surdo como é o chefe, deve colocar-se debaixo do seu nariz.

Já O Processo deixou claramente para trás esse tipo de explicações. K., no penúltimo capítulo, detém-se junto aos primeiros bancos,

entretanto, a distância pareceu ainda grande demais para o padre, que estendeu a mão e, com o indicador, mostrou-lhe um ponto, precisamente debaixo do púlpi­to. K. obedeceu, porém nesse lugar via-se obrigado a jogar a cabeça para trás a fim de poder ver o padre.

Quando Max Brod disse: "Invisível era o mundo dos fatos que lhe importavam", certamente, para Kafka o gesto era o mais invisí­vel de todos. Cada gesto é um acontecimento e quase se pode­ria dizer: um drama. O palco no qual este drama se desenrola é o Teatro do Mundo, cuja perspectiva é o céu. Porém o céu é só uma perspectiva: investigar sua lei seria como pretender depen-durar o pano de fundo de um teatro numa galeria de quadros. Como el Greco, Kafka abre com cada gesto o céu, e também como el Greco — que era o santo padroeiro dos expressionistas —, o elemento decisivo, o centro da questão, continua sendo nele o gesto. A gente que ouviu o golpe no portão caminha encurvada pelo terror. Assim um autor chinês representaria o terror, e nin­guém se sobressaltaria. Em outro fragmento, o próprio K. põe-se a representar. Quase sem dar-se conta tomou

da mesa, sem mesmo olhar, uma folha de papel, sus­tentou-a com a palma da mão e, levantando-a, colo­cou-a sob os olhos dos dois. Ao fazer isto não pensava em nada determinado, e sim que agia sob a impressão de que chegaria a completar este gesto um dia, se con­seguisse terminar o grande memorial que o libertaria da acusação.

Este gesto, como um gesto animal, une o mais enigmático ao mais simples. É possível ler durante muito tempo as histórias de animais de Kafka sem se perceber que não se trata, nelas, de homens. Quando tropeça com o nome do protagonista — o macaco, o cão ou a topeira —, o leitor levanta os olhos espantado e descobre que se encontra, então, muito longe do continente do homem. Mas Kafka é sempre assim: arranca ao gesto do homem seus suportes tradicionais e tem de tal sorte um objeto para reflexões sem fim. Contudo, estas reflexões, singularmente, também não têm fim, nem sequer quando se originam nas histórias simbólicas de Kafka. Pense-se na parábola Diante da lei. O leitor que a encontra em O médico rural toca, talvez, o ponto nebuloso em seu interior. Mas não teria ele sonhado em empreender a série de considerações sem fim. que surgem desta parábola, quando Kafka se detém a explicá-la? Isso acontece por intermédio do padre, em O Processo: e num ponto tão destacado que se poderia pensar que o romance não é mais que a parábola desdobrada. No entanto, o verbo "des­dobrar" tem duplo sentido. Se o botão se desdobra em flor, o barco de papel que se ensina às crianças a fazer desdobra-se em uma folha lisa. E este segundo tipo de "desdobramento" é o ade­quado à parábola, ao prazer do leitor de estendê-la até que seu significado seja completamente linear. Porém as parábolas de Kafka desdobram-se no primeiro sentido, como o botão se trans­forma em flor. Por isso seu resultado e a poesia são afins. Isto não impede que seus relatos se resolvam inteiramente nas formas da prosa ocidental e que mantenham com a doutrina uma relação similar à da Hagadah com a Halakkah. Não são parábolas, e não querem ser tampouco tomadas por si mesmas; são feitas de modo que possam ser citadas, que possam ser narradas a título de ilustração. Todavia, possuímos acaso a doutrina que as pará­bolas de Kafka acompanham e que ilustram os gestos de K. e os movimentos de seus animais? Não. E o máximo que podemos dizer sobre ela é que este ou aquele fragmento se lhe podem vin­cular. Kafka talvez dissesse: é um espólio que a transmite, po­rém nós podemos também dizer: é um mensageiro que a prepara. Trata-se aqui, de qualquer forma, do problema da organização da vida e do trabalho na comunidade humana. Este problema preocupou Kafka, por mais que lhe parecesse impenetrável. Se no célebre colóquio com Goethe, em Erfurt, Napoleão pôs a polí­tica no lugar do destino, Kafka — fazendo uma variação — pôde definir a organização como destino. Esta se lhe apresenta não só nas vastas hierarquias de fucionários de O Processo ou de O Castelo, mas também — em forma ainda mais tangível — nas di­fíceis e insondáveis empresas de construção, de cujo modelo tra­tou em A Construção da Muralha da China.

A muralha devia constituir uma proteção para séculos, eram, portanto, condições fundamentais para a tarefa a construção mais cuidadosa, a utilização das experiên­cias arquitetônicas de todos os tempos e de todos os povos, o sentido de responsabilidade pessoal dos cons­trutores. Para os trabalhos de menor importância po­dia-se empregar gente ignorante do povo: homens, mu­lheres, crianças, todos os que vinham oferecer-se atraí­dos pelo pagamento; contudo, para a direção de cada grupo de quatro pessoas, era necessário um homem in­teligente, perito em construções. . . .Nós — falo em no­me de muitos — aprendemos a conhecer-nos e a reen­contrar-nos conosco mesmos somente ao executar as disposições dos engenheiros supremos, e comprovamos que, sem a orientação dos chefes, nem nossa cultura escolástica nem nosso intelecto humano teriam bastado para a pequena tarefa que nos correspondia, no imen­so projeto.

Esta organização se assemelha ao destino. Meschnikoff, que tra­çou seu esquema no célebre livro A Civilização e os Grandes Rios Históricos, serve-se de expressões que poderiam ser de Kafka.

Os canais do Yang-tse-Kiang e os diques do Hoangho — escreve — são, segundo todas as probabilidades, re­sultado do trabalho comum, sagazmente organizado de . . . várias gerações. O menor descuido na escavação de um fosso ou no escoramento de um dique, a menor negligência, o egoísmo de um homem ou de um grupo de homens a respeito da conservação da riqueza hidráu­lica comum, torna-se, em condições tão especiais, fonte de desastres e calamidades sociais vastíssimas. Por isso um alimentador fluvial exige, com ameaças de morte, uma solidariedade estreita e constante entre massas de população que são, com freqüência, estranhas e até mesmo hostis entre si; condena cada um a trabalhos cuja utilidade coletiva apenas se tornará patente com o tempo e cujo plano é, muitas vezes, inteiramente in­compreensível para o homem comum.

Kafka queria contar-se entre os homens comuns. A cada pas­so que tentava dar, o limite da compreensão se lhe colocava. E, por seu lado, gostava de colocá-lo também aos outros. Freqüente­mente parece não longe de dizer, com o Grande Inquisidor de Dostoievski:

Porém se é assim, há aqui um mistério e nós não po­demos comprendê-lo. E se há um mistério, nós temos, então, o direito de pregar o mistério e de ensinar aos homens que o que importa não é a livre decisão de seus corações, não é o amor, e sim o mistério, ao qual estão obrigados a submeter-se cegamente e, portanto, inde­pendentemente de sua consciência.

Kafka não escapou sempre às tentações do misticismo. Com re­lação a seu encontro com Rudolf Steiner possuímos uma nota de diário que, pelo menos na forma em que foi publicada, não con­tém uma tomada de posição precisa por parte de Kafka. Acaso evitou tomá-la? Sua atitude a respeito de seus próprios textos nos leva a pensar que não é de nenhum modo impossível. Kafka dis­punha de uma rara faculdade para inventar analogias. Não obstan­te, e!e jamais esgotou o que é suscetível de explicação e tomou, inclusive, todas as medidas possíveis contra a interpretação de seus próprios textos. Para aventurar-se neles é preciso fazê-lo com cuidado, cautela e desconfiança. É necessário ter presente a ma­neira de ler própria de Kafka, tal como aparece na interpretação daquela parábola. Pode-se lembrar também seu testamento. A dis­posição pela qual ele ordenava destruir sua obra póstuma se se a considera bem, não se deixa compreender com mais facilidade, e exige um exame tão minucioso como as respostas do guardião diante da lei. Talvez Kafka, que confrontou cada dia de sua vida com comportamentos inexplicáveis e declarações ambíguas, quisesse pagar a seus contemporâneos, pelo menos no momento de sua morte, com a mesma moeda.

O mundo de Kafka é um Teatro Universal. Para ele o ho­mem encontra-se naturalmente em cena. E a prova está em que no teatro natural de Oklahoma todos são aceitos. É impossível compreender os critérios segundo os quais se os aceita. A aptidão para recitar, que de início pode parecer decisiva, carece sem dú­vida de qualquer importância. Mas isto também pode ser expres­so nos seguintes termos: aos candidates somente se lhes pede que recitem o papel de si mesmos. Que eles possam ser seriamente o que dizem ser, é coisa que escapa ao campo do possível. Os per­sonagens, com seus papéis, buscam asilo no teatro natural, assim como os seis de Pirandello buscam um autor. Em ambos os casos, esse lugar é o último refúgio, e isto não exclui que seja a reden-ção. A redenção não é um prêmio à vida, ou melhor, o último refúgio de um homem que, como diz Kafka, tem "o caminho blo­queado por seu próprio osso frontal". E a lei desse teatro acha-se contida em uma frase do Informe para tuna Academia: "Imi­tava-os porque buscava uma saída, por nenhuma outra razão". Um presságio de tudo isto parece aflorar em K. antes do fim de seu processo. Volta-se repentinamente para os dois senhores com car­tolas que vêm buscá-lo e pergunta:

"Em que teatro trabalham?" "Teatro?", perguntou um deles, virando-se para o outro para pedir-lhe conselho, com as comissuras dos lábios para baixo. O outro per­maneceu ali como um mudo a quem o organismo não responde.

Não respondem à pergunta, porém tudo leva a crer que os im­pressionara.

Sobre uma mesa comprida, coberta com uma toalha branca, oferece-se um banquete a todos os que passaram a fazer parte do teatro natural. "Todos estavam excitados e alegres". Para a festa os figurantes representam anjos. Estão sobre altos pedestais, que, rodeados de cortinas esvoaçantes, ocultam uma pequena escada em seu interior. Preparativos de uma quermesse camponesa ou tal­vez de uma festa infantil, onde o menino da fotografia, enfeitado e oprimido pelas roupas, teria perdido a tristeza que se vê em seu olhar. Se não tivessem asas presas à cintura, esses anjos po­deriam ser verdadeiros. Têm seus precursores em Kafka. Um deles é o empresário que sobe até junto do trapezista, golpeado "pela primeira dor" na rede de proteção, acaricia-o e aperta-lhe a cara contra a sua "de modo que as lágrimas do artista lhe banharam todo o rosto". Outro, anjo custódio ou da guarda, encarrega-se, depois do "fratricídio", do assassino Schmar que "aperta a boca contra as costas do policial que o conduz apressadamente". "Em Kafka — disse Soma Morgenstern - - há uma atmosfera de po­voado como em todos os grandes fundadores de religiões". E aqui é oportuno recordar a definição de piedade religiosa dada por Lao-tsé, tanto mais que Kafka fez dela uma transcrição per­feita em O próximo povoado:

As comunidades vizinhas podem estar ao alcance da vista, pode-se ouvir à distância o grito dos gaios e dos cães. Sem dúvida os homens deveriam morrer velhíssi­mos sem jamais ter viajado para longe.

Este é Lao-tsé. Também Kafka era um autor de parábolas, mas não era um fundador religioso.

Consideremos o povoado ao pé do castelo, no qual a preten­dida chamada de K. como agrimensor é confirmada de modo tão inesperado e misterioso. Brod disse, em seu posfácio a este ro­mance, que Kafka, para modelo do povoado ao pé do castelo, deve ter pensado num determinado lugar, Zürau, em Erzgebirge. En­tretanto podemos reconhecer nele, igualmente, outro povoado: o de uma lenda talmúdica que o rabino conta em resposta à per­gunta sobre porque o judeu prepara um banquete na noite de sexta-feira. A lenda refere-se a uma princesa que definhava no exílio, longe de sua gente, em um povoado cuja língua não com­preendia. Um dia recebe uma carta que diz que o prometido não a esqueceu, que se pôs em viagem e está a caminho para ela. O prometido, diz o rabino, é o Messias; a princesa, a alma; o po­voado, no qual se acha desterrada, o corpo. E como não pode ma­nifestar sua alegria ao povoado de outra forma porque nele não se entende sua língua, prepara-lhe um banquete. Com este po­voado do Talmud, achamo-nos no coração do mundo de Kafka. O homem contemporâneo vive em seu corpo assim como K, no povoado ao pé do castelo; o corpo lhe foge, converte-se em inimi­go. Pode ocorrer que o homem acorde uma manhã e se ache transformado em um inseto. A estranheza — a própria estranheza — se apossou dele. Kafka respira o ar deste povoado e por isso ele não caiu na tentação de converter-se em um profeta religioso. Tam­bém pertence a este povoado o curral de onde saem os cavalos para o médico, o quartinho sufocante onde Klamm se senta diante de um jarro de cerveja com um cigarro na boca, e o portão que, ao ser golpeado, abre-se para a ruína. O ar deste povoado não é de todo puro: nele se mesclam viciosamente a matéria embrionária e a matéria em decomposição. Kafka deve tê-lo respirado durante toda a sua vida. Não era um adivinho nem um fundador religio­so. Como pôde resistir?

O homenzinho corcunda

Como já se sabe há muito tempo, Knut Hamsun tem o cos­tume de mandar, de vez em quando, cartas com suas críticas aos jornais da pequena cidade próxima de onde vive. Há anos realizou-se nesta cidade um processo contra uma moça que havia matado seu filho recém-nascido. Foi condenada a uma pena na prisão. Pouco depois apareceu no jornal local uma declaração de Hamsun. Declarava que voltaria as costas a uma cidade que não sabia aplicar a pena máxima a uma mãe que havia matado seu filho recém-nascido: se não a forca, pelo menos a prisão perpétua. Passaram-se alguns anos e ele escreveu Bênção da Terra, onde se pode ler a história de uma criada que comete o mesmo crime, sofre a mesma pena, e como o leitor pode constatar com facili­dade, não mereceu outra mais severa.

As reflexões póstumas de Kafka contidas em A Construção da Muralha da China fazem recordar este episódio. Se bem que mal acabara de sair este volume póstumo, surgiu, apoiando-se em suas reflexões, uma interpretação de Kafka que se comprazia em utilizá-las sem considerar sua obra, de modo algum, verdadeira e própria. Há duas maneiras de errar totalmente com relação aos escritos de Kafka. Uma que consiste na interpretação natural, outra, na sobre­natural: ambas — tanto a interpretação psicanalítica quanto a teo­lógica — descuidam igualmente do essencial. A primeira é sus­tentada por Hellmut Kaiser; a segunda por vários autores, como H. J. Schoeps, Bernhard Rang, Groethuysen. Entre estes últimos é preciso contar também com Willy Haas, que sem dúvida for­mulou a respeito de Kafka — quanto a outros aspectos aos quais logo nos referiremos — observações muito interessantes. Isto não o salvou de uma interpretação da obra no sentido do clichê teo­lógico:

O poder superior, o reino da graça, foi representado por ele em seu grande romance O Castelo; o poder in­ferior, o reino do juízo e da condenação, no igualmente grande romance O Processo. O território entre ambos, o destino terrestre e suas difíceis exigências, procurou pintá-lo mediante uma severa estilização, em seu ter­ceiro romance: América.

O primeiro terço desta interpretação pode ser considerado, se­gundo Brod, como patrimônio comum da exegese kafkiana. Por exemplo, assim Bernhard Rang escreve:

Na medida em que se pode considerar o castelo como sede da graça, todos esses vãos esforços e tentativas significam, precisamente — em termos teológicos —, que a graça divina não se deixa alcançar e pressionar pelo arbítrio e a vontade do homem. A inquietude e a impaciência não fazem mais que impedir e confun­dir a sublime quietude do divino.

Esta interpretação é, por certo, cômoda; no entanto, à medida que a desdobramos, fica mais evidente que é insustentável. Isto é mais notório, talvez, em Willy Haas que em outros, quando declara:

Kafka procede. . . de Kierkegaard tanto quanto de Pascal, e pode-se até mesmo considerá-lo como o único descendente legítimo de Pascal e de Kierkegaard. Os três têm em comum o duro e cruel tema religioso fun­damental: que o homem é sempre culpado diante de Deus. . . O mundo superior de Kafka, o chamado Cas­telo, com seu exército imperscrutável, mesquinho, ex­travagante e lascivo de funcionários, seu céu misterio­so, joga um jogo terrível com os homens. . .; sem dú­vida o homem é profundamente culpado, inclusive di­ante deste Deus.

Esta teologia permanece insuficiente a respeito da teodicéia de Anselmo de Canterbury e incorre em especulações bárbaras, que nem sequer se podem fazer concordar com a leitura do texto kafkiano.

Tem acaso um funcionário isolado — diz-se justamen­te em O Castelo — direito a conceder perdão? Quando muito a autoridade reunida poderia tomar uma deci­são, porém, provavelmente, também ela tem o poder de condenar, mas não o de perdoar.

Este caminho chega logo a seu termo. "Tudo isto — escreve De-nis de Rougemont — não é o estado miserável do homem sem Deus, e sim o estado miserável de um homem submetido a um Deus que não conhece, porque não conhece Cristo".

É mais fácil extrair conseqüências especulativas da edição póstuma das notas de Kafka que esclarecer um só dos temas que afloram em seus contos e romances. Porém só estes podem ilu­minar as forças pré-históricas que ele enfrentou, forças que po­dem, desse modo, ser consideradas como as potências históricas de nossos dias. Quem dirá sob qual nome se apresentaram a Kafka? Certo é apenas que Kafka não pôde orientar-se entre elas. Não as conheceu; somente viu aparecer — no espelho que lhe apresentava a pré-história na forma da culpa — o futuro em for­ma de juízo. Contudo, Kafka não deu nenhuma indicação sobre como se deve entender esse juízo: não é o último, o universal?, não faz do juiz o acusado?, o procedimento mesmo não consti­tui o castigo? — A tudo isto Kafka não respondeu. Além do mais, é lícito pensar que Kafka esperasse uma resposta? Mais do que isso, não procurava deixá-la em suspenso? Em suas histórias, a épica reconquista a função que desempenhava na boca de Sche-herazade: a de adiar os acontecimentos. O adiamento é, em O Processo, a esperança do acusado — de que o procedimento não se converta pouco a pouco em veredicto. Também o patriarca deve aproveitar-se de um adiamento, ainda que por isto possa perder seu lugar na tradição.

Poderia imaginar—outro Abraão que — inclusive se desse modo não chegasse a ser patriarca ou nem ao menos mercador de roupas velhas, — estivesse dispos­to a obedecer ao pedido do sacrifício imediato, rápido como um garçon. E que sem dúvida não executaria o sacrifício por não poder afastar-se da casa, por ser in­dispensável, por ter a economia doméstica necessidade dele, por haver sempre ainda alguma coisa a ordenar, por não estar em ordem a casa e porque sem que es-tivesse em ordem sua casa, sem este suporte, não po­deria partir: a Bíblia mesmo o reconhece, uma vez que diz: "E pôs em ordem sua casa".

"Rápido como um garçon" se diz deste Abraão. Qualquer coisa para Kafka se deixava apreender apenas no gesto. E este gesto, que não entendia, é o ponto obscuro e nebuloso das pará­bolas. Deste ponto emana a obra de Kafka. É notória a sua ava­reza quanto a publicá-la. Seu testamento ordena que ela seja des­truída. Este testamento (que não pode ser evitado por quem quer que se ocupe de Kafka) diz que a obra não satisfazia a seu autor; que este considerava seus esforços como malogrados e que se con­siderava entre aqueles destinados a fracassar. O que fracassou foi sua grandiosa tentativa de reconduzir a poesia à condição de dou­trina e de voltar a dar-lhe, como parábola, a consistência e a sim­plicidade que eram as únicas qualidades que lhe pareciam ade­quadas frente à razão. Nenhum outro poeta seguiu com tanto rigor o mandamento: "Não te farás nenhuma imagem".

"Foi como se a vergonha fosse sobreviver a ele": com estas palavras conclui O Processo. A vergonha, que corresponde à sua "elementar pureza de sentimento, é o gesto mais forte de Kafka. Porém tem um duplo aspecto. A vergonha, que é uma reação íntima do homem, é também uma reação socialmente imperativa. Não é só vergonha diante dos outros, mas pode ser também ver­gonha para eles. De tal modo, a vergonha de Kafka não é mais pessoal do que a vida ou o pensamento que ela governa, e do qual ele mesmo diz: "Não vive sua vida pessoal, não pensa seu pen-samento pessoal. É como se vivesse e pensasse sob a repressão de uma família. . . Esta família desconhecida. . . não pode despedi-lo". Ignoramos como se compõe — de animais e de homens — esta família desconhecida. Só está claro que é esta família que obriga Kafka a deslocar — ao escrever — eras cósmicas. Se­guindo as injunções desta família faz rolar a rocha do acontecer histórico como Sísifo a sua pedra. Assim acontece que venha à luz sua parte inferior. Sua visão não é agradável. Porém Kafka pode resistir a ela. "Crer no progresso não significa crer que se tenha produzido já um progresso. Esta não seria uma fé". A época em que vive não significa para ele nenhum progresso sobre os começos pré-históricos. Seus romances se desenvolvem em um mundo pantanoso. A criatura aparece nele no estágio que Bachofen define como hetairico. O fato de que este estágio esteja esque­cido não significa que não aflore no presente. Inclusive acha-se presente justamente em virtude desse esquecimento. Em relação com este estágio há uma experiência que vai mais ao fundo que a do burguês médio. "Tenho uma experiência — diz Kafka em um de seus primeiro esboços — e não brinco ao dizer que é um enjôo de mar em terra firme". Não é por acaso que a primeira "contemplação" se produz em um balanço. E Kafka se demora infinitamente na natureza oscilante, flutuante das experiências. Cada uma cede à experiência oposta, mistura-se à ela.

Era verão — começa O golpe contra o portão —, um dia sufocante. Ao voltar para casa com minha irmã passamos em frente ao portão de um curral. Não sei se brincando, ou por distração, ela deu um golpe sobre o portão ou se só fez o gesto, com o punho cerrado, sem golpear.

A simples possibilidade desta terceira hipótese mostra as prece­dentes, que antes pareciam inofensivas, sob outra luz. Do pântano destas experiências surgem as figuras femininas de Kafka. São criaturas palustres, como Leni, que estende "o dedo médio e o anular da direita, unidos entre si por uma membrana quase até a última falange". "Belos tempos! — diz a ambígua Frida, ao recordar sua vida anterior —. Nunca me perguntaste sobre meu passado". Isto nos leva ao obscuro seio dos tempos, onde se rea­liza o acoplamento "cuja desenfreada luxúria — segundo diz Ba­chofen — é aborrecida pelas puras potências da luz celestial e jus­tifica a expressão lutae voíuptates da qual se serve Arnóbio".

Somente a partir disto pode-se entender a técnica narrativa de Kafka. Se outros personagens do romance devem comunicar algo a K., fazem-no, ainda que se trate da coisa mais grave ou mais surpreendente, de forma incidental e como se ele, no fundo, devesse sabê-lo há muito. É como se não houvesse nada novo, como se o protagonista fosse tacitamente convidado a recordar algo que esqueceu. Willy Haas interpretou o desenvolvimento de O Pro­cesso, com razão, neste sentido, ao dizer que

o objeto do processo, inclusive o verdadeiro protago­nista deste livro incrível é o esquecimento. . . cuja. . . propriedade fundamental é a de esquecer-se de si mes­mo. . . O esquecimento transformou-se aqui em uma figura muda — na pessoa do acusado — e em figura de intensidade grandiosa.

Não se pode afastar, de imediato, a tese de que "este centro misterioso" deriva "da religião judaica".

Aqui a memória, como piedade, desempenha um papel de enorme importância. Não é. . . um, e sim ... o mais profundo atributo de Jeová, o de recordar, o de ter uma memória infalível "até a terceira e a quarta geração", e mesmo até "a centésima". O ato. . . mais sagrado do. . . rito consiste no cancelamento dos pe­cados do livro da memória.

O esquecido — e com esta noção achamo-nos num limiar posterior da obra de Kafka — não é nunca puramente individual. Cada objeto particular de esquecimento se confunde com o es­quecido da pré-história, entra com ele em combinações inumerá­veis, mutantes, incertas, que dão origem sempre a novos prodí­gios. O esquecimento é o recipiente do qual surge à luz o ines­gotável mundo intermediário das histórias de Kafka.

Aqui a plenitude do mundo vale como a única reali­dade. Cada espírito deve ser objetivo, deve estar à parte, para ter lugar e direito de existir. O espiri­tual, na medida em que desempenha ainda uma fun­ção, resolve-se em espíritos. Os espíritos tornam-se in­divíduos totalmente particulares, cada um com seu nome e especialmente ligados ao nome de quem os venera. . . Aqui não se vacila em plenificar com a sua multidão um mundo já superpovoado. . Sem escrúpulos multiplica-se aqui a multidão dos espíritos; aos antigos agregam-se sempre os novos, . . .cada um com seu nome próprio e diferente dos outros.

O texto que acabamos de ler não trata de Kafka, e sim da China. Pois é a forma em que Franz Rosenzweig descreve, em "Stern der Erlösung, o culto chinês dos antepassados. Todavia para Kafka o mundo de seus antepassados tal como o mundo dos fatos que lhe importavam, permanecia impenetrável até o fundo, e não há dúvidas de que este mundo, assim como as árvores totêmicas dos primitivos, conduz para baixo, até as bestas. De resto, não é só em Kafka que os animais são depositários do esquecido. No pro­fundo conto de Tieck O Louro Eckbert o nome esquecido de um cãozinho — Strohmi — é a soma de uma culpa enigmática. Assim pode-se compreender porque Kafka procurava continuamente cap­tar a presença do esquecido nos animais. Os animais não consti­tuem a meta, porém são indispensáveis para chegar a ela. Pense-se no "artista da fome", que, "para dizê-lo claramente, era apenas um obstáculo no caminho que conduzia aos estabulos". Não vemos por acaso o animal de A Toca ou a "topeira gigante" dar asas à imaginação e atilar o cérebro, assim como o vemos tatear e esca­var a terra? Mas, por outro lado, este pensamento é, a uma só vez, algo frágil e incerto. Oscila indeciso de uma preocupação a outra, saboreia todas as angústias e tem a volubilidade do de­sespero. Assim, achamos em Kafka, até mesmo mariposas; "o caçador Graco", que, culpado, não quer reconhecer sua própria culpa, "transformou-se em uma mariposa". "Não ria", diz o ca­çador Graco. E isto é uma verdade: entre todas as criaturas de Kafka, são especialmente os animais que se dedicam à reflexão. O que a corrupção é para o Direito, a angústia o é para o pensar des­tas criaturas. A angústia confunde os acontecimentos e, não obstan­te, é sempre, neles, a única fonte de esperança. Mas visto que a coisa mais estranha e esquecida seja o corpo — nosso próprio corpo — compreende-se porque Kafka denominou "a besta" ao acesso de tosse que irrompia do seu interior. Era o primeiro assal­to do grande tropel.

O mais estranho bastardo que a pré-história engendrou em Kafka mediante a culpa é Odradek.

No princípio parece um carretei chato, em forma de estrela, e na realidade parece, também, coberto de fio; entende-se que não se poderia tratar senão de velhos fios arrebentados, cheios de nós e embaraçados, de todo tipo e cor. Porém não é só um carretei; do centro da estrela surge uma pequena varinha transversal e sobre esta varinha está encaixada uma segunda em ângulo reto. Por meio desta última varinha, de um lado, e de um dos raios da estrela, por outro, o conjunto pede apoiar-se como sobre duas pernas.

Odradek "se aloja, segundo os casos, em sótãos, escadas, corredo­res, vestíbulos". Prefere os mesmos lugares que o tribunal, que está atrás da culpa. O chão é o lugar dos objetos abandonados e esquecidos. Talvez a obrigação de apresentar-se em juízo suscite uma sensação similar à de abrir um baú que está no chão fecha­do há anos. De bom grado adiaríamos a empresa até o final dos tempos, tal como K. descobre que seu memorial "teria podido servir para manter ocupado o espírito já pueril de um velho aposentado".

Odradek é a forma que as coisas assumem no esquecimento. Desfiguram-se, tornam-se irreconhecíveis. Assim é "a preocupação do pai de família" a qual ninguém sabe o que é; assim a barata da qual sabemos até bem demais que representa a Gregor Samsa, assim o grande animal, meio gato e meio cordeiro, para quem talvez "o cutelo do açougueiro fosse uma libertação". Entretan­to, estes personagens de Kafka se relacionam, através de uma longa série de figuras, com o protótipo da deformidade, o cor-cunda. Entre os gestos dos contos kafkianos, nenhum é mais fre­qüente do que o do homem que inclina profundamente a cabeça sobre o peito. É o cansaço nos senhores do tribunal, o aparato nos porteiros do hotel, a altura do teto — baixo demais — nos visi­tantes da galeria. Porém, em Na Colônia Penal as autoridades servem-se de um mecanismo antiquado, que grava letras muito floreadas sobre as costas dos culpados, multiplica as feridas, acumu­la ornamentos, até que as costas dos culpados tornam-se clarivi-dentes e chegam a decifrar de forma direta o escrito, de cujas letras aprenderão o nome de sua culpa desconhecida. É, portanto, das costas, a incumbência de aprender e de carregar o nome da sua culpa. E assim é, em Kafka, desde sempre. Uma velha nota de diário diz:

Para ser o mais pesado possível, coisa que me parece útil para adormecer, tinha cruzado os braços e coloca­do as mãos sobre as espáduas, de modo que jazia como um soldado carregado com seu equipamento.

Aqui o peso coincide tangivelmente com o esquecimento (daquele que dorme). Em O Homenzinho Corcunda, a canção popular sim-bolizou a mesma coisa. Este homenzinho é o inquilino da vida desfigurada, e se desvanecerá quando vier o Messias, de quem um grande rabino disse que não pensa em transformar o mundo com violência, e sim ajustá-lo só um pouquinho.

Geh ich in mein Kámmerlein,

Will mein Bettlein machen,

Steht ein bücklicht Mânnlein da,

Fá'ngt ala an zu lachen.

É o riso de Odradek, do qual se diz: "Soa mais ou menos como o crepitar de folhas caídas".

Wenn ich an mein Bánklein knie,

Will ein bisschen beten,

Steht ein bücklicht Mânnlein da,

Fàngt ais an zu reden:

Liebea Kindlein, ach ich bitt,

Bet iürs büclicht Mânnlein mit.

Assim termina a canção popular. Em sua profundidade, Kafka toca o fundamento que não lhe dão nem "as intuições da sabe­doria mítica" nem "a teologia existencial". E que é tanto o fundo do povo alemão, quanto o do povo judeu. Se Kafka não rezou — coisa que não sabemos — distinguia-se em grau elevadíssimo, pelo que Malebranche define como "a oração natural da alma": a atenção. E nela, como os santos nas suas orações, ele se solidari­zou com todas as criaturas.

Sancho Pança

Em um povoado jazídico, segundo se conta, uma noite, ao final do sabá, os judeus estavam sentados em uma mísera casa. Eram todos do lugar, salvo um, que ninguém conhecia: um ho­mem particularmente miserável, maltrapilho, que permanecia aco-corado em um canto escuro12. A conversa havia girado em torno dos mais variados temas. De repente, alguém colocou a pergunta sobre qual seria o desejo que cada um teria formulado, se tivesse podido satisfazê-lo. Um queria dinheiro, o outro um genro, o ter­ceiro um novo banco de carpinteiro, e assim por diante no cír­culo. Depois que todos tinham falado, restava ainda o mendigo em seu canto escuro. De má vontade e vacilando respondeu à pergunta:

Queria ser um rei poderoso e reinar em um enorme país, e achar-me uma noite dormindo em meu palácio, e que das fronteiras irrompesse o inimigo, e que antes do amanhecer os cavaleiros estivessem em frente ao meu castelo e que não houvesse resistência, e que eu, despertado pelo terror, sem tempo sequer para vertir-me, tivesse que fugir de camisa e que, perseguido por montes e vales, por bosques e colinas, sem dormir nem descansar, tivesse chegado aqui são e salvo, sobre o banco, neste canto. Isso queria.

Os outros olharam-se desconcertados. "E que terias ganho com esse desejo?" perguntou um. "Uma camisa", foi a resposta.

Esta história penetra profundamente na economia do mundo de Kafka. Ninguém disse, de fato, que as deformações que um dia o Messias virá a corrigir são apenas deformações de nosso es­paço. São também deformações de nosso tempo. Kafka certamen­te o pensou, e com base nesta certeza fez seu avô dizer:

A vida é extraordinariamente curta. Em minha lem­brança ela é de uma tal brevidade que eu, por exem­plo, não compreendo como um jovem pode decidir-se a cavalgar até o povoado vizinho sem temer que —. deixando de lado qualquer desgraçado acidente — a duração de uma vida comum que se desenvolve com felicidade não seja infinitamente breve demais para uma tal cavalgada.

Um sósia deste velho é o mendigo que em "sua vida comum que se desenvolve com felicidade" não encontra sequer o tempo para um desejo,-porém que na vida insólita, infeliz — na fuga —, a que se transfere com sua história, é isento deste desejo e o troca pela realização.

Há entre as criaturas de Kafka, uma raça que leva em conta, particularmente, a brevidade da vida. Essa raça vem da

cidade do Sul. . ., dela se dizia: "Essa é gente! Pen­sem um pouco: não dormem!" "E por que não dor­mem?" "Porque não se cansam nunca". "E per que não se cansam?" "Porque são loucos." "Os loucos aca­so não se cansam?" "E como poderiam cansar-se os loucos?"

É evidente que os loucos e os ajudantes — que tampouco nunca se cansam — são afins. Porém esta gente sobe ainda mais alto. Em um determinado momento se diz, a respeito da fisionomia dos aju­dantes, que faziam "pensar em adultos, inclusive quase em estu­dantes". E, de fato, os estudantes, que aparecem em Kakfa nos momentos mais impensados, são os porta-vozes e regentes desta raça. " 'Mas, quando dorme?', perguntou Karl, contemplando ma­ravilhado o estudante. 'Dormir.. . Sim!', disse o estudante, 'Dor­mirei quando tiver terminado meus estudos' ". É preciso pensar nas crianças que vão dormir de má vontade. Enquanto dormem pode acontecer algo que exija sua presença. "Não esquecer o me­lhor" soa como uma advertência que nos é familiar entre uma obscura massa de antigas histórias, e que, talvez, não se encontre realmente em nenhuma. O esquecimento, entretanto, refere-se sem­pre ao melhor, porque refere-se à possibilidade da redenção. "A idéia de querer ajudar-me — diz ironicamente o espírito errante sem paz do caçador Graco — é uma doença que se cura ficando na cama". Em seus estudos os estudantes velam, e por acaso a máxima virtude do estudo consiste justamente em mantê-los vigi­lantes. O jejuador jejua, o guardião cala e os estudantes velam. De modo tão secreto atuam em Kafka as grandes regras da ascese.

A coroa deles é o estudo. Kafka o reevoca com a devoção dos anos submersos da infância.

Quase da mesma maneira — agora havia passado muito tempo — Karl estava sentado em sua casa, à mesa de seus pais, e fazia seus deveres, enquanto seu pai lia o jornal ou fazia contas ou a correspondência para uma sociedade, e sua mãe estava ocupada em um trabalho de costura e a cada ponto levantava a agulha sobre o pano. Para não inccmodar seu pai, Karl tinha sobre a mesa só o caderno e a caneta, e punha os livros ne­cessários à direita e esquerda, sobre duas cadeiras. Que calma havia então! Como era raro chegar um estra­nho à sala!

Talvez esses estudos não tenham significado nada. No entanto, estão muito próximos desse nada que apenas torna útil alguma coisa, e que é o Tao. Era isso que Kafka perseguia no seu de­sejo de

martelar uma mesa com habilidade paciente e minu­ciosa e ao mesmo tempo não fazer nada; mas não de forma que se possa dizer: "Para ele, martelar não é nada", e sim "Para ele, martelar é um verdadeiro mar­telar e ao mesmo tempo nada", com o que, inclusive, o martelar seria ainda mais audacioso, ainda mais de­cidido, ainda mais real e, se se quer, ainda mais louco"

Uma atitude tão decidida, tão fanática, é a dos estudantes no estudo. Não se poderia imaginar atitude mais estranha. Os escre­ventes, os estudantes, estão sempre sem alento. Estão sempre a procura de algo.

Freqüentemente o funcionário dita em voz tão baixa que o escrevente não pode ouvi-lo se ficar sentado e, portanto, deve levantar-se para ouvir o que se lhe dita, sentar-se depressa e escrevê-lo, depois pular de novo em pé, e assim por diante. Ê bem estranho tudo isto, ou antes, quase incompreensível.

Contudo, talvez se possa comprender melhor se se pensar nos atores do teatro natural. Todos os atores devem responder no momento da sua chamada. E também em outros aspectos se asse­melham a estes seres assíduos. Para eles, de fato, o martelar e um verdadeiro martelar e ao mesmo tempo nada": quer dizer, quando penetram no âmago de seus papéis. Eles estudam esse papel, e seria um mau ator quem esquecesse uma palavra ou um só gesto de tal papel. Mas para os membros da companhia de Oklahoma esse papel é a vida precedente de cada um. Daí a na­tureza" desse teatro natural. Seus atores são seres redimidos. Po­rém não o é ainda o estudante a quem Karl observa durante a noite, em silêncio, na sacada, enquanto

lia o livro, passava as páginas, de vez em quando pro­curava algo em outro volume que pegava sempre com gesto rapidíssimo, e várias vezes tomava notas em um caderno que aproximava da cara de modo extravagante.

Nesta representação viva do gesto Kafka é inesgotável. Po­rém isto não acontece nunca sem maravilha. Tem-se comparado corretamente K. com o soldado Schweyk; um se maravilha com tudo, o outro não se maravilha com nada. Na época da aliena­ção máxima dos homens entre si, da,s relações infinitamente me-diatizadas — enfim, as únicas que eles têm —, inventou-se o filme e o gramofone. No filme o homem não reconhece o seu próprio andar, no gramofone não reconhece sua própria voz. Isto foi confirmado através de experiências. A situação do sujeito de tais experiências é a de Kafka. É essa situação que o reconduz ao estúdio. É possível que no estúdio reencontre fragmentos de sua própria existência, que ainda fazem parte de seu papel. É possível que ele volte a receber o gesto perdido, como Peter Schle-mihl a sua sombra vendida. É possível que chegue a compreen­der-se, mas com que enorme esforço! Porque o que brota do es­quecimento é uma tempestade. E o estúdio é uma cavalgada que rnarcha contra ela. Assim o mendigo cavalga sobre o banco da estufa em busca do seu passado, para apossar-se de si mesmo na forma do rei fugitivo. À vida, que é breve demais para uma ca­valgada, corresponde esta cavalgada, que é suficientemente longa para uma vida:

.. .até que se abandonam as esporas, porque não há esporas, até que se atiram fora as rédeas porque não há rédeas, e não se vê mais do que o campo diante de si, igual a uma charneca pelada, onde já se desvane­ceram o pescoço e a cabeça do cavalo.

Assim se realiza a fantasia do cavaleiro feliz que se lança impe­tuosamente em busca do passado em uma viagem alegre e vazia e já não é uma carga para sua montaria. Infeliz, o cavaleiro que está acorrentado ao cavalo: porque se propôs uma meta futura mesmo que seja a mais imediata: o depósito de carvão. Infeliz também seu animal. Infelizes ambos: a caçamba e o cavaleiro.

Cavaleiro de caçamba, com a mão em cima, na alça, a mais simples rédea, giro pesadamente escada abaixo; embaixo sobe pomposa minha caçamba. Camelos deita­dos rentes ao chão, não são mais belos quando se le­vantam gingando sob a batuta do guia.

Sem mais esperança, já não se abre nenhum espaço com a pro­messa de ser "as regiões das montanhas geladas" onde o cava­leiro de caçamba se perca para sempre. Das "ínfimas regiões da morte" sopra o vento que está a seu favor: o mesmo que fre­qüentemente emana no Kafka da pré-história do mundo e que é também o que empurra a barca do caçador Graco.

Em toda parte — diz Plutarco —, nos mistérios e nos sacrifícios, entre os gregos e entre os bárbaros, se en­sina que devem existir dois seres principais e duas forças particulares opostas, das quais uma empurra dire­tamente para a frente, enquanto a outra desvia e faz retroceder.

O redobramento é a direção do estudo, que transforma a vida em escrita. Seu mestre é Bucéfalo, "o novo advogado", que, sem o grande Alexandre — quer dizer, livre do conquistador lançado para a frente —, empreende o caminho do regresso.

Livre, os flancos já não mais apertados pelas pernas do cavaleiro, junto à quieta lâmpada, longe dos cla­mores das batalhas alexandrinas, lê e volta as páginas de nossos vetustos livros.

Esta história foi objeto de interpretação há algum tempo, por parte de Werner Kraft. Depois de ter analisado minuciosamente cada detalhe do texto, o intérprete observou: "Não existe em toda a literatura uma crítica do mito mais poderosa e mais radical em toda a sua extensão". A palavra "justiça" — pensa Kraft — não é empregada por Kafka; apesar disso, é a justiça que efetua aqui a crítica do mito. Porém, uma vez chegados aqui, corremos o risco de trair Kafka se nos detivermos neste ponto. Pode verdadeira­mente o direito ser posto em movimento, em nome da justi­ça, contra o mito? Não: como jurista, Bucéfalo permanece fiel às suas origens. Parece, no entanto, — e nisto poderia consistr, no sentido de Kafka, a novidade para ele e para a profissão de advogado — que ele não exercita sua profissão. O direito que não é mais exercido e que é só estudado, é a porta da justiça.

A porta da justiça é o estudo. E certamente Kafka não se atreve a associar a esse estudo as promessas que a tradição asso­ciava aos estudos da Thora. Seus ajudantes são sacristãos que fi­caram sem.paróquia; seus estudantes, escolares sem escrita. Agora nada mais os detém em sua viagem "alegre e vazia". Mas Kafka encontrou a lei de sua viagem: pelo menos uma vez conseguiu adequar seu ritmo veemente a uma cadência épica, tal como o buscou durante toda a sua vida. Confiou essa lei a um esboço que se tornou o mais perfeito, não apenas por seu caráter de inter­pretação.

Sancho Pança, que de resto nunca se gabou disto, através de uma porção de romances de cavalaria e aven­turas lidos em horas da tarde e da noite, com o correr dos anos, alcançando seu demônio — a quem deu o nome de Don Quixote —, logrou transformá-lo de tal modo que este se dedicou a cumprir desenfreadamente as ações mais loucas, as quais, certamente por falta de um objeto predestinado que deveria ter sido justa­mente Sancho Pança, não faziam mal a ninguém. San­cho Pança, homem livre, seguia imperturbável a Don Quixote em suas correrias, talvez por um certo senti­do da responsabilidade, e extraiu dela um alívio útil e grande ao fim de seus dias.

Louco pacífico e ajudante não ajudado, Sancho Pança man­dou seu cavaleiro adiante. Bucefalo sobreviveu ao seu. Homem ou cavalo, já não é coisa tão importante, conquanto se lhe tenha retirado o peso de cima.